Cristovão Tezza
Entrevista realizada em outubro de 2005 e publicada na revista acadêmica Entrelinha de número 20, de abril de 2006. A entrevista obteve o 3º lugar na categoria Reportagem Impressa no 11º Prêmio Sangue Novo no Jornalismo Paranaense, de 2006.
Por Rafael Urban
Quando moleque, não passou no exame de admissão do colégio Estadual: reprovou
Por que escrever?
Há uma razão em cada diferente momento da vida, mas acho que não há uma resposta universal. Num primeiro momento, foi uma fuga, uma afirmação e imitação. Num segundo momento, passou a ser uma ética, ou seja, era uma postura diante do mundo; escrever era uma maneira como eu me definia. Anos depois, escrever passou a ser parte de uma cultura literária: fazer o diário de uma pátria literária que não tem fronteira, “fazer parte disso aí”. E, finalmente, hoje eu escrevo porque não sei fazer outra coisa.
Escrever, para você, ainda é imitar?
Não, hoje já é outro momento. O processo de escrever tem uma coisa interessante: você é escrito por aquilo que escreve, ou seja, ficar muito tempo sozinho para escrever é um processo que vai te moldando. Você, de certa forma, vai se situando no mundo. É um processo de transformação: você nunca sai igual do outro lado dele. Quando acaba, você já é um pouco outra pessoa. Então, escrever, mais do que fazer um objeto, é viver uma experiência de mundo.
Como você trabalha as diversas vozes no seu texto, a polifonia?
Não gosto de usar a palavra polifonia porque ela se confunde com a definição técnica da palavra segundo Bakhtin. Não acho que sou o escritor polifônico da maneira como ele [Bakhtin] coloca. Aliás, quase ninguém: só o Dostoievski conseguiu realizar da maneira como Bakhtin entendia. O que Bakhtin tinha em mente [com a polifonia] era uma visão filosófica de mundo. Uma filosofia que desse conta da multiplicidade da vida, em vez de fechar num ângulo só. A minha literatura, de certa forma, tem esse traço. Existe nela uma multiplicidade de pontos de vista em que um olhar ilumina o outro. Praticamente todos os meus livros têm essa duplicidade dos pontos de vista. Não sei explicar bem o porquê, mas foi uma coisa que foi amadurecendo no meu trabalho. E um dos traços da literatura é capacidade de apreender o mundo por um olhar que não é o nosso; ser capaz de se transportar para outros pontos de vista e conhecer o mundo pelo lado de lá. Nenhuma outra linguagem tem esse poder. Todas são afirmações unívocas do sujeito: um ensaio, um artigo, são unilaterais. Já a literatura dá essa transcendência.
Um leitor relatou que durante a leitura de “O fantasma da infância” praticamente desistiu de ler porque não estava entendendo. O fato de você contar as histórias em paralelo o havia confundido. Quando ele percebeu que eram duas “histórias”, resolveu ler uma delas até o fim, pulando as outras páginas. Você escreveu as partes separadamente?
O “Fantasma da infância” foi realmente o caso mais fechado de duas histórias entrelaçadas. O personagem de uma história está escrevendo a outra história. Existe uma confusão de nomes propositada. E naquele caso escrevi rigorosamente um capítulo após do outro, alternadamente. Era muito louco. Eu tinha que entrar no clima para dar o contraponto.
Já no “Trapo“ fiz algumas montagens. Algumas cartas do Trapo [personagem do romance], eu remanejei. Mas digamos que oitenta por cento do “Trapo” foi escrito em seqüência.
No posfácio da primeira edição do seu livro, “Trapo”, publicado em 88, o poeta Paulo Leminski faz duras críticas ao livro...
É o único posfácio de um livro que é contra um livro, que fala mal do livro. Na verdade, eu nem fui consultado, foi uma decisão unilateral da editora [Brasiliense]. E um fato curioso é que teve uma greve do correio na época, e eu demorei muito para ver o livro. Só tinha visto uma notícia no “Estadão” dizendo que tinha saído o livro com o posfácio do Leminski. Fiquei muito curioso. Corria atrás e não achava o livro, e o que a editora mandou pelo correio não chegava. Só um mês depois fui ver e quando vi me deu um frio na espinha. Pensei: “Poxa, é o primeiro livro que edito nacionalmente, e esse babaca do Leminski fala mal!” [Risos]. Eu não o conhecia muito, não tinha contato com ele. Depois ele disse que se reconheceu no “Trapo”, ele achou que eu estava querendo retratá-lo.
E você não estava? [Trapo era o apelido do personagem, um poeta suicida de nome Paulo].
Não! De maneira nenhuma. Nem me passou pela cabeça. O personagem [apelidado de Trapo] se chamava Paulo, mas também por um acaso total. Conheci um Paulo que foi preso pela polícia por porte de drogas e na hora de colocar o nome do personagem – nome que só aparece uma vez – escolhi Paulo porque achava que combinava com aquela figura. O personagem era um adolescente típico, que tinha problemas, e o Paulo entrou por causa disso. Como o livro era editado pela Brasiliense e como o Caio Graco [editor] era um grande comerciante, queria um nome de impacto na capa do livro. Eu era um escritor praticamente desconhecido, não é a toa que o nome dele na capa era maior que o meu [risos]. No posfácio, ele diz que não gostou do livro, que eu fui influenciado por Bukowski – escritor que eu ainda não conhecia na época – e que o livro era só uma boa idéia [que poderia ter sido um bom livro]. Esperei quatro edições para poder tirar o posfácio. Só pra frisar: não tenho nada contra o Leminski. Ele é um grande poeta, de importância fundamental, e isso é puramente uma anedota.
Por que seus livros não têm prefácio?
Sou um lobo solitário. Meus livros nunca têm orelha de ninguém, é sempre a editora que prepara os textos de apresentação e na contracapa. O livro se apresenta sozinho.
Em algumas das entrevistas disponíveis no seu site (www.cristovaotezza.com.br), você afirma que compra seus primeiros livros sempre que os encontra nos sebos...
[Risos] Brinco sempre com isso. O primeiro foi “A cidade inventada”, um livro de contos que escrevi durante 15 anos. Ao mesmo tempo, lancei um romancinho juvenil, pela coleção “Novos escritores”, o livro “Gran Circo das Américas”, que era muito fraco também. E depois saiu o “O terrorista lírico”, também por uma editora local. Certa vez, comprei um estoque. Tinha uns cinco ou seis – estavam em liquidação num balaio – e comprei todos.
Numa entrevista em 1988 ao “Jornal dos Bancários”, você afirmou que teria vontade de reescrever o livro de contos “daqui uns vinte anos”...
Sempre tive um sonho de escrever um bom livro de contos. Como eu não tenho mais imaginação para escrever contos, às vezes fico vampirizando meus próprios contos. Quando uma revista me pede para escrever um conto, eu vou ao “A cidade inventada”, pego um, reescrevo, dou uma burilada e solto. Eu não tenho o olhar de contista. A idéia de voltar a publicar um livro de contos sempre me vem à cabeça, mas é um projeto sempre jogado mais para frente. Nunca vale a pena voltar ao passado, isso é algo que sempre digo.
Hoje, sua literatura é madura?
É, tanto quanto pode ser. Acho que sim, sou um escritor maduro. Hoje a questão técnica não é mais um problema. Agora é comigo, eu estou sozinho na literatura.
Muitos dos seus personagens lutam com a própria mediocridade: isso é um dos marcos da sua literatura. Você se sente uma pessoa lutando contra a própria mediocridade?
Acho que sim, mas não no sentido juvenil, em que você tem uma relação agressiva com o mundo. Isso para mim, hoje, nem passa pela cabeça: estou só vivendo. Aliás, eu tenho uma visão bastante voltada ao homem comum. Nos meus últimos livros, minha visão tem sido bastante tolerante.
“Biscoito fino”: A sua arte se encontra nessa definição?
Bem... Essa expressão é muito datada. É de uma época em que a prosa, para ser tida como prosa, tinha que ser outra coisa. Acredito que isso já não tem mais sentido hoje. Eu tenho alguns livros mais difíceis de apreensão, como é o caso de “Breve espaço entre cor e sombra”, livro de que gosto muito. É um livro mais sofisticado, que exige certa formação, e às vezes as pessoas se perdem no meio. É um livro que foi muito elogiado.
Você escreve pensando numa elite?
Não. De maneira nenhuma. Eu escrevo para mim mesmo, só que eu, sozinho, sou os outros também. Mas nunca pensei – objetivamente – para escrever para isso ou para aquilo. Tenho pouco controle: é uma ilusão achar que o escritor tem controle total sobre a escrita. Alguns escritores conseguem. No meu caso, não. Eu tenho uma vaga idéia na cabeça, consigo fazer o esqueleto narrativo e, no momento em que descubro uma linguagem, começo a escrever o livro e daí ele vai se automodificando, mudando as intenções e até pegando outro tom, completamente inesperado, mesmo porque eu deixo a intuição correr solta.
No livro “Breve espaço entre cor e sombra”, existe uma linguagem muito técnica voltada à pintura...
Passei um bom tempo vendo pinturas, estive na Itália – tinha uma personagem italiana. Foi uma época de leitura intensa para mim. Mas deu um grande prazer, pois gosto muito de ler.
Você pesquisa para fazer seus livros?
Não, eventualmente não. Para “O fotógrafo”, pesquisei um pouco sobre revelação, mas como gosto muito de fotografia o tema foi facilitado. Minha literatura trata de temas muito contemporâneos...
O livreiro Eleotério de Oliveira Burrego disse que “por muito tempo, Tezza viveu à sombra de Dalton”... Comente.
O Dalton não só é um grande escritor como um dos grandes contistas do século XX. Eu sempre tive uma relação muito boa com a literatura do Dalton e bebi muito do que ele escreveu. Aquela questão da transcendência que ele dá a Curitiba. A questão da linguagem dele – acredito que todo escritor brasileiro deve alguma coisa ao Dalton, aprendeu algo com ele. Também existe a questão de que trabalhamos em campos diametralmente opostos. Eu tomei meu rumo: escrevo romances, grandes empreitadas. Mas nunca senti essa sombra. Nunca me intimidei pela presença do Dalton; muito pelo contrário: fui estimulado.
O fato de ele ser um ícone não atrapalhou seu sucesso?
De forma nenhuma. Na literatura, cabe um monte de gente. Mas Curitiba tem isso de: “o” arquiteto, “o” escritor, “o” músico.
Você é um grande escritor?
Como? [risos] Não. Eu sou um escritor. A grandeza vem do olhar de fora.
E como você se vê como escritor?
Olha... Isso aí já saiu da minha cabeça como fonte de preocupação. Tem um momento em que estou escrevendo e penso: “eu sou um gênio”. Mas daí vou ler no dia seguinte e penso: “Isto aqui está uma droga!” [risos] São estados emocionais, altos e baixos, durante o momento em que estou escrevendo. É puramente instantâneo. Eu tenho uma boa relação com o que escrevo, eu gosto do que escrevo. Mas, mais que isto, esta é uma preocupação que não tenho.
Como é a relação escritor-professor?
É complicada. É esquizofrênica. Não dou aulas de literatura, mas de língua portuguesa. Mas desenvolvo um lado que me agrada muito, que é trabalhar com um material didático para a língua portuguesa e com a teoria do Bakhtin. É uma relação fantástica, porque o fato de ser professor me dá as condições de sobrevivência para escrever (risos). É o trabalho ideal; não sei se como publicitário ou jornalista teria condições de escrever como escrevo, sendo professor é mais tranqüilo.
O personagem Constantin, de “Breve espaço entre cor e sombra”, tem alguma relação com o livro “A Montanha Mágica” ?
Eu pensei na “Montanha Mágica” em alguns momentos. Especialmente quando eles estão voltando do cemitério. Eu chego a citar o livro. Tem alguma coisa, mas é episódica.
Quais são suas influências literárias?
Tem uma família de escritores que me marcaram. Balzac, Dostoievski e Joseph Conrad. No Brasil, Machado de Assis, escritor que se dedicou ao Brasil urbano; Graciliano Ramos, escritor de que gosto muito. Carlos Drummond de Andrade foi uma influência de texto muito grande, decorei muitos de seus poemas, e ele talvez seja o melhor escritor brasileiro do século XX. Depois, num outro momento, o Camus e o Faulkner. Fui também muito ligado ao teatro e li muito o teatro americano, Arthur Miller, Tennessee Williams... Fui muito influenciado pelo teatro. Se você pegar o “Trapo” como exemplo, a casa do “seu Manoel” é um palco. Tanto que quando eu o adaptei para o teatro foi muito fácil. Quando eu tinha uns 17 anos, li o “Contraponto” do Aldous Huxley, e achei que fosse o livro perfeito. Talvez minha idéia de contrapontos venha daquela época. É uma literatura forte e ideológica. É impressionante como os personagens dos livros de Huxley têm uma cabeça parecida com a das pessoas de hoje.
Esse modelo de seus livros, em que um discurso ilumina o outro, é definitivo? Todos os seus livros vão ser assim?
Não. Isso vai acontecendo. O livro que é mais unilateral é o “Luciano Pavollini”. Apesar de eu ter inventado um contraponto em que ele [o personagem tema do livro] está escrevendo para uma psicóloga [Clara, que nunca aparece no livro]: “Clara pede que eu converse sobre a infância. Eu tinha tudo para dar certo, exceto a família”... É o personagem preso escrevendo para a psicóloga. Apesar dele nunca vê-la, o fato de ela existir ressoa no seu discurso. Ainda tenho vontade de escrever um livro contando a história do personagem saindo da cadeia e conhecendo Clara.
Não contar tudo para o leitor é algo que você valoriza em seus livros... O que seria isso na literatura?
[Risos] O olhar da gente é incompleto. A literatura clássica do século XIX, por exemplo, é mais ou menos esgotante. Ela dá todos os sinais: ela pressupõe que o narrador é capaz de dar conta de toda a realidade e constrói essa realidade com um olhar totalizante. Isso acabou. Hoje se parte do princípio de que o olhar falha, ele não tem controle do tempo e do espaço. Mesmo quando estou narrando em terceira pessoa, “assume-se” a incompletude do olhar; é como se estivesse narrando em primeira pessoa. Existe a necessidade de deixar o suspense. Acho que o suspense é a prova de que a História - com “H” maiúsculo - não está pronta, o mundo não está pronto, e nem as pessoas estão acabadas. Isso é a prova de que as coisas podem mudar, podem ir tanto para um lado como para outro: um certo livre arbítrio... falso [risos].
“O fotógrafo” é o seu melhor livro?
Não sei... Talvez sim... Acho que escrevi em gêneros um pouco diferentes. Para uma linha... não sei... Tenho dificuldade em dizer qual é o melhor... Acho que todos são bons [risos]. Talvez seja o mais completo. É um tipo de leitura.
Você quer dizer que depende da pessoa?
Depende da pessoa. É um livro formalmente mais fechado que o “Breve espaço entre cor e sombra”, que tem seus momentos irregulares, apesar de apresentar momentos emocionais mais intensos. “O fotógrafo” é um livro mais homogêneo, mais equilibrado.
Seu português é impressionantemente preciso. Qual a importância dos conhecimentos de língua para um escritor?
É fundamental. A literatura não é uma arte ingênua, nem primitiva. Ela pode até ser – existem manifestações literárias ingênuas, por exemplo, o cordel do Nordeste –, mas a prosa romanesca moderna exige um domino lingüístico. É uma ferramenta do escritor.
Quão autobiográficos são seus livros?
Os meus livros não são autobiográficos no sentido tradicional da palavra. Até porque eu teria que ser um louco completo: entre meus personagens, tem todo tipo de maluco. Eles são confessionais, no seguinte sentido: a estrutura do meu romance como gênero é confessional. Meus livros, tanto em primeira como em terceira pessoas, se situam como confissões, e isso dá uma ilusão autobiográfica muito grande... Mas é um disfarce. Eu diria que, de autobiográfico, há algumas emoções eventuais e fragmentadas.
O cineasta Jean Cocteau, certa vez, foi questionado por um jornalista: “Se sua casa estivesse pegando fogo e pudesse levar apenas uma coisa consigo, o que levaria?” Cocteau respondeu: “Eu levaria o fogo”. Qual a sua resposta?
[Risos] Se eu estivesse escrevendo um livro, eu levaria meu original. Aliás, eu escrevo a mão e tenho pesadelos de perder os originais.
Bate-bola
Profissão: escritor.
Cidade: Curitiba.
Curitiba: Curitiba sou eu.
Paranaense: uma coisa difusa.
Literatura: um modo de viver.
Crítica: a frieza necessária.
Romancista: um modo de olhar.
Um livro: “Irmãos Karamazov”, de Dostoievski.
Um filme: qualquer um do Fellini.
“Um” filme: “Amarcord”, do Fellini.
Uma obra: “Montanha Mágica”, de Thomas Mann.
Teatro:
Tempo: agora.
Presente:
[- No sentido de tempo?
- Na sua interpretação...]
Presente é um livro.
Passado: um motor.
O futuro: é agora.
Universidade: é o ganha pão (risos).
Leminski: um poeta.
Dalton: prosador.
Professor: uma belíssima profissão.
Doutorado: uma pedreira! [Risos].
Cultura: a nossa fôrma.
Drogas: melhor não tê-las.
Família: “É o templo do demônio”, dizia o Trapo [risos].
Fim: não tem fim.
Relojoeiro: é a máquina do mundo [risos finais].
1 comment:
Parabéns pela entrevista, Rafael. Pelo diálogo, é possível perceber que é necessário muito mais suor do que inspiração para se escrever bem.
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